domingo, 3 de fevereiro de 2013

Penélopes, Sherazades, bordados, narrativas

Um dia desses, não me perguntem como, cismei em bordar. Talvez tenha visto em algum lugar alguém bordando, sei lá. A verdade é que nunca bordei. A pergunta clássica a seguir seria "por que isso agora?" Nada a ver com o suave e sofisticado sumiê com que andei flertando. Mas, para mim, de algum modo, tudo a ver com a narrativa. Pensei em bordar para contar histórias, imprimindo-as, tatuando-as na pele que se insinua no tecido. 
A narrativa sempre me encantou, antes mesmo de aprender a ler. Não por acaso na época do ginásio (atual Ensino Fundamental II) vivi o papel de um caipira contador de histórias, com sotaque e chapéu, o mais perto que cheguei da arte dramática. Não à toa gosto de quando em vez rever e reouvir Forrest Gump e Peixe Grande. Gosto dos narradores viajantes, que costumam ter muito o que contar, seja verdade ou não.
O maior de todos os narradores, porém, não é um viajante (aquilo que conta, portanto, deve vir da imaginação, e não da memória). Ainda por cima, é mulher: Sherazade. Mesmo com esses "senões", tinha uma história na ponta da língua para cada noite passada com o sultão. Rubem Alves, em uma de suas crônicas, diz a respeito dessa narradora: "quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra - é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer."
Imagino Sherazade contando suas histórias como quem tece um bordado - um ponto de cada vez, cada um contribuindo para formar uma imagem, como uma palavra sucede outra na narrativa e faz sonhar o ouvinte com aquilo que vê somente por artes da imaginação. O sultão sendo lentamente enredado na trama tecida pela narradora. A palavra que garantia a sobrevivência de Sherazade é a mesma que faz o amor viver, reviver, reinventar-se, avançando um passo a cada dia no complexo desenho criado pelos amantes.
E assim, por obra do bordado, como não me lembrar de outra personagem feminina, Penélope, que tece, desfaz e refaz à espera do marido Ulisses?
Certamente, Ulisses, um viajante nato (herói, pois não?), teria muito mais o que contar que sua pacata e bela esposa. Ela só tece. Mas é como se, na urdidura feita e refeita para ganhar tempo e recusar outros pretendentes, Penélope ousasse começar do zero para reafirmar seu amor. Diferentemente de Sherazade, que retoma a história do ponto mesmo em que parou ("prossigamos", parece dizer diante de um deserto infinito ou das montanhas insondáveis da Pérsia). Para nós pode parecer uma tremenda perda de tempo, fazer e desfazer um trabalho (um retrabalho, não é assim que diríamos?), quase um "Dia da Marmota" (como no filme Feitiço do tempo, com Bill Murray) entre teares. Além disso, Penélope, embora rainha de Ítaca, é como uma das "Mulheres de Atenas" cantadas por Chico: submissa, leal, à espera de seu marido-amante-guerreiro. No fundo, porém, como Sherazade, ela combate a morte bravamente a cada dia. Não prossegue até que Ulisses retorne, como se pudesse congelar o tempo ao desfazer à noite o trabalho de um dia inteiro. Como Sherazade, Penélope não permite que o amor morra.
E o que fica desse enredamento de ideias e personagens? Que para bordar, narrar e amar, igualmente, há que ter talento, paciência e coragem para retomadas e recomeços diários. Não perder o fio, entendem? Não perder o fio.

4 comentários:

  1. Um beijo para voce minha amiga que traduz tão bem as coisas da alma.

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  2. Lindo diálogo entre Penélope e Sherazade, Sô! Você já leu A moça tecelã, da Marina Colassanti? Tem uma edição da Global que é toda ilustrada com desenhos de bordado, linda linda...

    http://modosdeolhar.blogspot.com.br/2012/10/a-moca-tecela-marina-colasanti.html#!/2012/10/a-moca-tecela-marina-colasanti.html
    http://farm1.static.flickr.com/61/199057934_adb8ac6f82.jpg

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    1. Nossa, Tam, que coisa linda!!! Tanto o texto quanto o bordado - aliás, que beleza seria poder desmanchar as coisas toscas, hein? Hahaha
      beijos!

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